terça-feira, 6 de julho de 2010

Meu Discurso Indireto


Acordo, mas não abro os olhos. Gosto de abri-los apenas quando meu corpo está tomado de toda consciência. Consigo até sentir o cheiro da leve penumbra que entra pelas frestas da minha cortina mal fechada, é o suficiente para iluminar minha coleção de fotografias.
Minhas panturrilhas estão arrepiadas agora, algumas músicas me remetem à mesma sensação. Transporto-me para um outro tempo, talvez no passado, talvez no futuro, mas tudo que eu busco agora é esse mesmo tempo em um presente. Passo as mãos pelo meu próprio corpo, gosto de senti-lo sem vê-lo. Posso imaginar que elas, minhas mãos, podem ser uma brisa embalando-me as pernas e cabelos, em qualquer lugar desse mundo. Podem ser como as mãos do amante ainda não conhecido, por debaixo do meu lençol recém-lavado ou podem ser uma simples demonstração de afeto que eu posso e preciso me dar.
Levanto, passo perto do espelho e me olho. Fico forçando meus olhos a enxergar a coisa certa. Finjo que ignoro minhas sardas, procuro mais mechas claras do que meus cabelos costumam mostrar. O piso gelado desperta os poros das minhas pernas, no entanto, não procuro meias para calçar. Procuro me manter aquecida, mas não o suficiente, gosto dessa sensação.
Sirvo uma xícara de café para mim e um pote de água para o companheiro Boris, o labrador. Paro e começo a realizar novamente as mesmas ações rotineiras, só que dessa vez em frente ao espelho, prestando maior atenção de como minhas mãos se comportam em tais circunstâncias. Pego a xícara e invento novos modos de segurá-la, mas todos (os modos) bebem do mesmo gosto: café não-amargo e doce.
Procuro uma roupa a vestir, algo que combine com meu cheiro doce (e não-amargo, por sinal). Não encontro, desisto de sair. Seria imponente dizer que acendi um cigarro e o fumei como nunca havia feito antes, combinaria com meu personagem. Mas não, eu não fumo. A melhor coisa que pude fazer foi ligar o som em um volume desconhecido e tragar meu próprio ócio. Ao contrário do que pensam, ele não provém de angústia alguma, é apenas a necessidade do não-raciocínio, é válida em alguns momentos.
Tudo bem, não nasci para isso. Pego a primeira roupa que vejo, calço um tênis velho e encardido, vou correr. São tantas as pessoas na rua, gostaria de desacelerar meu ritmo e prestar atenção em cada uma delas. Assim, correndo, as pessoas me são como linhas, apenas alguns vultos de vida que meus olhos captam. A passagem das pessoas é tão imperceptível quanto a passagem dos ponteiros no meu relógio. Pergunto-me: Quantas linhas são necessárias para formar o emaranhado humano? Dou “bom dia” para tantas, umas respondem com a fala, abusando de toda a apatia. Outras respondem em um conjunto irreverente de cabeça e olhar. Algumas nem respondem. Toda essa variedade particular de saudações me fez lembrar aqueles tantos modos pelos quais segurei minha xícara de café, essa manhã.
Volto para casa, não sinto vontade de almoçar. Sinto vontade de escrever e assim o faço, estou aqui e agora. Minha cabeça, como sempre, borbulhante de ideias dos mais variados gêneros consegue esboçar algumas linhas de pensamentos supérfluos, efeitos do ócio. Ele faz de meu corpo instrumento para criatividade inútil (ou inusitada, diga-se assim de passagem).
Sento-me na beira da cama e observo o nada. Tento imaginar se o "nada" estaria perdido por entre as penumbras e a poeira que sobrevoa pelo meu quarto, o que seria muito, mas muito interessante. Me faria acreditar que o "nada" existe e que até ele pode despertar numa menina ociosa como eu (ou inusitada, diga-se assim de passagem)o alívio de que nada neste mundo possui carga zero.

Traguemos nosso ócio, exploremos nosso corpo, reinventemos nossos modos. Façamos até mesmo do ócio, um instrumento criador. Sejamos o instrumento, sejamos o criador. Esse é o meu ócio.

Nota: Escolhi o título "Meu discurso indireto" por fazer referência à falta de diálogo com uma segunda pessoa, à necessidade da introspecção. A fotografia foi escolhida para representar a ideia de que o ócio também é capaz de nos fazer querer enxergar novos ângulos (do mundo e de nós mesmos).