segunda-feira, 28 de junho de 2010

O Auge da Reciclagem Humana


É poder abusar de toda a introspecção privada por anos de juventude, devido aos grandes ruídos, grandes sentimenos e emoções que ela propicia. A juventude é sempre tão barulhenta...Ser idoso é permitir-se controlar o volume do que se ouve através do olhar: ir fechando devagarmente os olhos e quanto menos coisas a vista alcançar, mais coisas a se ouvir. Abrir gradativa e novamente os olhos,deixando que os sentimentos transformem-se em um misto de tudo que se vê e ouve.
O ser humano se apega tanto à juventude por sua a incapacidade de lidar com o próprio perdão. Na juventude é possível errar, existe o tempo a consertar. Na velhice o tempo deixa de ser o remediador de todas as medidas e o que resta? Apenas a capacidade de se auto-compreender, de distanciar-se o suficiente para enxergar o que foi vivido em um todo. Quando estamos próximos demais de algo, esse, passa a sair de foco. É como um objeto fotografado bem de perto: não consegue ser discernido ou identificado.
Perceber que a vida não é um dispositivo de constante criação, e sim, de constante reciclagem. A vida consegue sintetizar tamanha diversidade de aprendizado aproveitando-se apenas de uma única emoção ou experiência. A velhice é o auge dessa contínua reciclagem. É extrair o máximo do mínimo.
É aprender a conviver com a solidão do mundo que a cada dia se cala. É aprender a conviver com a solidão dos próprios órgãos, da própria sanidade. É remeter-se à uma coragem infantil, aquela que não nos permite pensar.
Olhar para trás e saber diferenciar a ação que o tempo exerce sobre as pessoas: se nelas ele despertou a mudança ou a revelação.

“Ah filha, eu gostava do seu avô, mas não cheguei a amá-lo. Casei-me com ele porque era alguém muito carente, meu pai não me dava carinho e eu não via a hora de recebê-lo. Eu pensei que ao longo do tempo o amor pelo seu avô surgiria, mas ele conseguiu ser mais frio que meu pai. Eu até poderia tê-lo amado, mas o amor é como uma florzinha, precisa ser regado".

"Ouvir é entrar por aqui (ouvido), deixar chegar até aqui (cabeça) e descer até aqui (coração)”.

"Eu detesto este mundo cibernético”.

"Não deixe que terceiros acabem com a sua harmonia".

"Só é possível conhecer a Deus através do amor".

"Não deixe que a máquina substitua o ser humano".

" O que importa não é o corpo...É o que o corpo exala. É carinho, é amor".

"Sabe filha, tem uma hora que nós vamos ficando velhos e precisamos rever nossos conceitos".

(Frases retiradas de diálogos com idosos). Nota: A fotografia foi tirada (ilegalmente) em uma de minhas visitas no asilo Cidade Vicentina.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A minha simbiose e a de Aline

Precisava urgentemente ir para casa. A última aula estava mais massiva do que o normal, era de matemática. O professor era um homem de meia-idade de passado provavelmente amargurado, o mesmo adorava fazer piadas carregadas de um bom humor-negro. A menina havia terminado um relacionamento a pouco tempo e desde então era o alvo preferido das brincadeiras do professor.
O sinal da saída mal havia tocado, ela tratou de se retirar o mais rápido possível e antes que vissem sua cara inchada evidenciando um choro, partiu rumo ao caminho de casa pensando nos últimos acontecimentos em sua vida. Sempre pensava muito, chegava até lhe doer a cabeça. O cheiro do protetor solar, ainda molhado, fazia com que seu nariz ardesse mais que o sol do meio-dia. Voltava a pé para casa e não era por falta de opção. O caminho, de fato, era cansativo, mas sua cabeça estava tão cheia de resquícios do passado, lembranças e perspectivas futuras que o trajeto todo passava batido. Quanto mais cheia sua mente estava, mais involuntários tornavam-se os movimentos de suas pernas.
Ao atravessar uma rua ainda próxima ao colégio, foi freada por um carro desnorteado que parou bem em seu caminho. O motorista era um senhor quase senil de cabelos e barba grisalha. A menina não pôde deixar de notar certa urgência no rosto do velho que falou apressadamente:
- Minha filha, onde fica o Hospital Universitário?
- Humm...O Hospital Universitário? É em frente a minha casa. Bem, vire à direita e siga reto. Depois vire a próxima esquerda e o senhor dará de frente com o um semáforo. Depois desse semáforo vire à direita novamente e siga reto. O senhor dará de frente com uma Avenida, então...
- Minha filha, eu não sou daqui! Preciso levá-la ao hospital urgentemente! – dizia o grisalho bigodudo apontando para uma jovem grávida e mulata chorando no banco do passageiro.
- Espere aí, o senhor está querendo me dizer que esta moça está tendo seu bebê agora?
-Sim!
- E a bolsa já estourou?
-Obviamente!
-Então quer dizer que se não chegarem logo ao hospital esta mulher terá seu bebê neste carro?
-De fato!!
- Meu senhor, então deixe-me entrar nesse carro e eu os guio até o hospital! – disse a menina já entrando no automóvel em um impulso frenético. O banco de trás estava lotado de parentes desnecessários e a mulata não tinha força o suficiente para afastar-se e levantar o banco.
-Quer saber, vou aqui na frente com ela mesmo! Vire a próxima direita, senhor!
E assim, segundo os comandos da menina, o velho seguiu apressadamente. Apesar de sério, era muito sarrista:
- É, Aline...Fique tranquila, o hospital fica a apenas mais duas horas daqui.
Aline ria ao mesmo tempo em que chorava. A menina segurava sua mão o tempo todo e fazia-lhe carinho na testa
- É seu primeiro filho, Aline?
- É sim
- Que honra, então! Terá uma boa aventura a contar sobre o dia do seu parto! – disse a menina despertando certa alegria na mulata.
O carro cheirava a pele negra com cigarros. Nenhum dos parentes ali presentes assemelhavam-se a uma figura paterna, Aline deveria ser mãe solteira.
- Mas diga-me, menina, você volta todos os dias a pé da escola? Haja pernas, não? – disse o velho. Na verdade, a menina tinha vontade de responder que não, que só estava voltando a pé para organizar os próprios pensamentos ou tentar, pelo menos, diminuir a ausência que às vezes se sente mesmo rodeado de muitas pessoas.
- Volto sim, senhor. Me agrada o trajeto e já estou acostumada com o cansaço. – e estava mesmo, o cansaço não era corporal.
- E você com certeza pretende ser médica, imagino eu – de certa forma ele não estava errado em presumir de tal forma.
- Não exatamente, eu quero ajudar as pessoas. Talvez, um dia, eu descubra como.
- É, é como encontrar a cura para a tal da AIDS...
Mas ela acreditava que algumas doenças podiam ser bem mais malignas do que as fisiológicas.
- Senhor, o hospital é logo ali!
Estacionaram em frente à entrada. A menina ajudou Aline a levantar-se do banco e a abraçou fortemente dizendo emocionada:
- Aline, boa sorte! Vai dar tudo certo, apesar de toda a dor você já conseguiu e essa é,com certeza, uma boa história para se contar!
- Que Deus te abençoe, menina e muito obrigada!
Ficou observando de longe Aline entrar na recepção. Acenou e seguiu novamente o rumo de sua casa. Ficou pensando nela, em toda dor que a gravidez proporcionava em seu útero e tudo por um outro ser. Ficou pensando que ela mesma também sentia fortes dores, não no útero, como as de Aline, mas que também eram por um outro ser. Sentiu-se privilegiada, reconheceu que como ela, alguns amantes (aqueles que amam) podiam ser comparados a uma gravidez. O amor, assim como o de uma gestante, “só é bom se doer”.

Essa crônica é um relato ocorrido há alguns dias. Foi uma das experiências mais ricas que vivi, principalmente porque pude exercitar a capacidade de associar, contextualizar e comparar diversas situações, emoções que vivo com as de outras pessoas.
Aline me ensinou que algumas simbioses (primeira relação estabelecida entre uma mãe e um filho, através do cordão umbilical) não ocorrem apenas em uma gravidez, mas também, em momentos em que estamos formados humana e suficientemente para encarar novas realidades. Seja a simbiose de antigos amores (como a minha), seja a de uma gravidez (como a de Aline) ou de tantas outras condições que nos fazem querer permanecer dentro de “úteros” pelos quais nos encontramos diversas vezes e dificilmente conseguimos nos desprender (afinal são tão acolhedores e quentinhos, não?). A separação e a mudança são as experiências necessárias que vivemos em nossas primeiras horas de vida e, por mais dolorosas que algumas sejam, é irônico pensar o quão elas se repetirão por diversas vezes.
Bem, é isso. A propósito, quais são os úteros em sua vida? Vamos cortar as simbioses que precisam ser cortadas.


Nota: A última frase, que diz “amor só é bom se doer” é um trecho da música “Canto de Ossanha”, composição de Vinicius de Moraes.