quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Vermelho Gabriela

Era assim todos os dias, impreterivelmente: acorda, tira a pilha do relógio, volta a folha do calendário, fecha a cortina, baseado bem bolado. Às vezes tinha um livro, o folheava tal qual o calendário, palavras, frases. Algumas lhe reverberavam na cabeça, tal qual o baseado bem bolado. Num trecho lia: "agora podia sentir seu lado humano". Sim ele podia sentir seu lado humano.
Lembrou-se de uma vez, quando estava com certa garota: estavam penetrados corporalmente e, naquele momento, soube que podia sentir seu lado humano.
Ele, só acreditava no apalpável, no que se podia tocar. Fora essa mesma garota que o transportara a tal vida de agora (medíocre para uns, diga-se de passagem). Tinha se apaixonado pelo belo par de seios, codinome Gabriela.
Até então desconhecia o gosto do tabaco, o gosto da erva e do orvalho. Da massa e das maçãs. Sentiu vontade de comer maçãs, esquecera-se do gosto momentaneamente, depois lembrou. Mas seria massa ou maçã o que agora lhe invadia a boca? Não soube, talvez nunca mais o fosse saber, sentiu medo. Releu em um dos livros: "agora podia sentir seu lado humano". Agora podia, podia, podia sentir seu lado humano, humano...
Ocorreu-lhe a mente uma frase, Gabriela dissera uma vez: "Te amo, menos do que você a mim, mas mais do que eu à mim mesma". Reminiscências de um par de seios, de um nome e agora de uma frase.
Lembrou-se de outra ocasião em que estiveram a sós. O silêncio, como sempre, consentia nos lábios do humanizado. Naquela lembrança, estava ela debulhada em êxtase. Lembrara-se ele de que vez alguma a vira assim. O amava e somente por alguns minutos. Era como se fossem transportados ao paralelismo de um passado distante. Numa única badalada, voltavam a ser João e Maria.
“Somos mesmo amantes ou inimigos, não?” - era o que Gabriela costumava dizer. O dizia inspirada no que ouvia. Na música popular brasileira.
E ele nada dizia, inspirado talvez na musica clássica, Bach. Ela não conhecia, talvez por isso não pudesse sentir que ele também falava, mas não como música popular brasileira, mas como violino. Não com retórica dos namorados, mas com poesia de gestos.
Não se lembrava a cor do cabelo de Gabriela, um azul desmaiado? Não, isso eram seus olhos... Seria ruivo? Não, vermelhos eram seus modos. Preto? Loiro? Castanho? Não, assim não poderia ser. Gabriela era sem meios termos, era extremos. Incrivelmente, não estava todos os dias bonita. Era visivelmente linda aos olhos do apaixonado, exótica, aos olhos dos simpatizantes e feia aos olhos do mundo. Seu amor era transitório, bêbado, desequilibrado. E ele era o equilibrista. A cada dia era uma luta trazê-la para dentro de si, no corpo e na alma.
Após fechar o livro que o reportara a tais lembranças, morder uma maçã e logo em seguida jogá-la no lixo, pegou sua jaqueta jeans furada e partiu rumo fora daquele quarto. Sua mãe sempre lhe dizia que era bom levá-la consigo, caso fizesse frio. Tinha poucas lembranças maternas, mas as que tinham eram muito fortes. Também eram mesmo amantes ou inimigos.
Era o sexto dia da semana, o dia de sentir seu próprio lado humano, o dia que o encaminhou para fora. As ruas eram uma coisa entre pálidas e sêcas, assim como seus transeuntes. O céu era de verão, apesar de tudo, as pessoas pareciam sufocadas. Ele contemplava a tudo indiferente. Sua jaqueta furada o protegia de tudo, meteu o dedo pelo furo e pôde quase ouvir mais uma vez sua mãe pedindo para costurá-la. Quando foi que de amante passaram a inimigos? Talvez no dia em que ela a costurou, de fato, a angústia lhe invadiu o peito mais uma vez, a fúria. Ela não tinha o direito, não poderia tê-la costurado. Refurou-a inúmeras vezes tentando encontrar o ponto certo, o ponto harmônico. Impossível. Parou e espirrou, algumas lágrimas desceram de seu nariz, era salgado e quente.
Gabriela, fora ela que descobrira o ponto exato, o furo certeiro, a questão é que ele ia se esvaindo, vazando... Mas dessa vez ele se certificaria para que ninguém o costurasse.
Vazava, mas não era seu amor, pelo contrário, ele permanecia, era a única coisa que permanecia, aliás. O resto ia se esvaindo, ia sendo despejando para fora.
- Eu amo você, demasiadamente e urgentemente - disse uma vez Gabriela em mais uma de suas lembranças.
- E eu amo você, desmesuradamente e...
Não dissera na ocasião a palavra, mas agora ela lhe concretizava a boca. Agora, depois de tudo, sabia exatamente a palavra que faltava, a palavra que a tudo explicaria.
- Amo você desmesuradamente e mortalmente - ficou a repetir a frase.
Não pode remontar agora o motivo, a causa, mas ele a machucara, certa vez ele a ferira, como poderia?
Angustiou-lhe o peito essa possibilidade, tentou pensar que não, mas sabia em crescente desespero que sim, embora ela a princípio negasse e ele não pudesse, na ocasião, fitar-lhe os olhos. Podia sentir as borboletas morrendo em seu estômago.
Ele pediu desculpa, bem que as pediu. E ela aceitou, bem que as aceitou. Mas estava além de palavras, o que a boca expressava era alheio ao estômago, como se essa, de alguma forma se desvinculasse desse último. E as borborletas agora jaziam mortificadas, talvez para sempre.
Por uma vez mais quis chorar, mas estava sêco demais para tal privilégio. Gabriela era sêca, aliás, talvez fora ela que o secara.
Parou no primeiro orelhão que avistou na rua, ainda era memorável o número de Gabi. Comprou um cartão telefônico de um português com sotaque fajuto, se deparou frente a números, lembranças. Sentia medo agora, sua mão direita tremia mais que sua perna em noites frias com o lençol mal coberto. Sentia medo do que lhe esperava por de trás da linha. Talvez doce Gabi, talvez sagaz e felina Gabriela. Coitado, mal sabia agora que ela o desprezava, seu amor ficara guardado dentro de uma caixinha tola de lembranças chamada coração.
-Alô? - sim, era a voz de Gabriela, tão mais madura, tão mais segura, um tanto frustrante, confessou o humanizado a si mesmo.
-Gabriela...? - houve uma pausa torturante na voz da jovem e ele podia saber o que se passava dentro da cabeça dela, principalmente, dentro do seu coração. Eram sim lembranças, carícias, dor e rancor. Incrivelmente ele queria conhecer o novo rosto de Gabi, sabia que havia mudado de face, não era para menos. Ele havia deixado apodrecer as doces lembranças que tiveram. Na verdade não amava Gabriela, amava somente a sua lembrança. Gabriela? Não existe mais, não a quem ele procurava e estava do outro lado da linha esperando qualquer reação. Sentiu uma dor no peito, queria poder viver só de passado e não tem mais forças pra buscar isso num futuro próximo, não com Gabriela.
Inconscientemente percebeu que tudo que pensara estava sendo pronunciado pelos seus lábios, mas Gabriela já havia saído da linha há um bom tempo, ele estava apenas conversando consigo mesmo. Voltou para casa, quis recomeçar o sexto dia da semana e buscar seu futuro. Dormiu por um longo tempo: acordou, colocou a pilha no relógio, arrancou a folha do calendário, abriu a cortina, baseado bem bolado...Percebeu que algumas coisas não mudam, somente o tempo.

domingo, 15 de agosto de 2010

21ª Bienal Internacional do Livro


Esse post é apenas uma descrição do meu dia de ontem com uma bela dica para quem curte um evento cultural e não só de porte literário.
Bom, ontem estava de pé desde as sete da manhã, estive na escola esse horário para a não esperada recuperação de física (que por sinal não faz jus ao nome, já que a única coisa que recuperei foi o cansaço semanal). Após isso, reuni-me com Pâmela, Paçoca e Juliana em frente ao colégio para embarcamos numa trip: a 21ª Bienal Internacional do Livro, ocorrida pela primeira vez no Brasil (mais precisamente em São Paulo) na década de 70, baseada nos costumes europeus em promover feiras de livros.
Tomamos um cafézinho no Mac Donalds e partimos rumo à estação de trem, lá fiz algumas fotografias (adoro o ambiente de estação). Dentro do trem ficamos conversando, trocando ideias. Chamei a atenção de Pâmela para um senhor que estava sentado bem a nossa frente, de pele dourada, olhos fundos, demasiadamente redondos e pretos.:
- Olha lá aquele senhor sentado na janela, Pâmela. Repare na penumbra de sol que está nos olhos dele, daria uma bela fotografia.
- Engraçado isso, né? Você conseguiu analisar esse lado da visão fotográfica, eu estava reparando no lado psicológico. Olhe os olhos dele...Se movimentam como os de uma criança curiosa.
Juliana também fez uma observação que me fez pensar:
- Eu sinto tanto sono no trem...Parece que estou sendo ninada com o balanço dos trilhos.
Olhei as pessoas em volta, olhei o senhor, um rapaz dormindo atrás de mim com um fone nos ouvidos e outro apenas pensando, adoraria ter sabido o quê. Sim, estavam todos sendo ninados. O trem e o sono são duas pausas que as pessoas dão (quer queiram ou não) para se desligarem das emoções proporcionadas pela realidade. Em ambos podemos sonhar, estabelecer um diálogo próprio e assim como quando despertamos do sono para voltarmos a viver nossas realidades, nos despertamos de nossos pensamentos para desembarcamos do trem em uma outra parada, a estação (onde também damos uma continuidade em nossas realidades).
Chegamos em São Paulo, pegamos um ônibus e fomos para a feira que estava demais. Não só por tratar-se de leitura, mas por conseguir agregar de forma tão harmniosa a questão da mesma com o intercambismo cultural: palestras e palestras dos mais variados gêneros, entre elas sobre os escritores Clarice Lispector e Monteiro Lobato, debates jornalísticos orientando sobre a profissão repórter e uma mostra sobre a cultura indígena.
Foi incrível ver a reação das pessoas dentro de cada editora, cada uma com sua particularidade e fascínio próprio, me senti em pura sintonia com elas.
Não conseguimos visitar toda a feira (fica a dica pra quem adora demorar e procurar minunciosamente seu livro), porém, adquiri dois que me valeram muito a pena: "Psiquiatria, Loucura e Arte" da editora Edusp, aborda o tema usando fragmentos da história brasileira para tal análise e "Cine Filô" de Ollivier Pourriol que aborda diversas questões filosóficas que podemos encontrar nos filmes, como Forrest Gump e Vidas em Jogo.
Saímos de São Paulo e o céu estava quase que escuro. Enquanto esperávamos o ônibus, as meninas resolveram tomar outro café e eu decidi escrever sobre o dia de ontem. Comecei e mal-terminei, o ônibus chegou e minha escrita fora interrompida. Dormi a viagem toda ouvindo a música que só eu conseguia ouvir, ela estava na minha cabeça. Peguei no sono e quando acordei já estava em Jundiaí. O cansaço valeu a pena, valeu pela companhia, pela viagem e pelo destino. Ler, viver: com toda certeza é uma viagem.

Nota: A fotografia foi tirada na estação Tietê, são tantas as cores, são tantas as pessoas. Trilha sonora para o texto - "Broken Horse", Freelance Whales.

sábado, 7 de agosto de 2010

O Céu dos Quedistas


Sonhei que estava no topo do mundo e que dele despencava sem cordas de segurança ou qualquer outro dispositivo que me protegesse do que estaria por encontrar ao final. Na verdade havia cordas, mas escolhi não usá-las. Enquanto caía de braços abertos, me perguntava: "aonde vou parar no fim de tudo isso? E por que sem cordas?", o medo invadia meu corpo e se misturava com toda adrenalina que o declínio proporcionara. Não sabia exatamente o por que de ter me permitido despencar, só sabia, inexplicavelmente, que deveria fazê-lo.
Apesar do medo, a queda me fez sentir o vento que vinha de baixo e me descabelava por inteira, que tapava meu nariz e me obrigava a expirar de uma nova maneira. Nenhuma outra queda havia sido assim tão prazerosa. Foi fascinante não saber pelo que esperar, o que estava por encontrar não era visível ou previsível.
Quer saber o que havia abaixo da queda? Uma espécie de cama elástica que me impulsionava para cima como um foguete, foi irônico como a mesma me proporcionara as mesmas sensações anteriores, porém de forma inversa: me fez sentir o vento que vinha de cima e assentava meus cabelos, que dava prepulsão ao meu nariz e me fazia inspirar com todo o corpo. Então eu alcancei o céu nadei por ele todo, deixando que a brisa me fizesse flutuar por entre o azul e entrar em contato com outras pessoas, "quedistas" como eu. Chamei de “o céu dos quedistas”.


Nota: Esse sonho foi real e significou para mim uma grande metáfora. A partir de hoje sonho com a grande queda. Após acordar, percebi que se tivesse usado cordas, estaria abusando de uma presunção equivocada: a de que em toda queda há uma aterrissagem dolorosa e que esse mecanismo (as cordas), que de início viria para proteger, acabaria me impossibilitando da grande subida.
Ao contrário do que se pensa, nem toda queda é letal. É necessário entender que o “céu” só é alcançado por aqueles que se permitem “cair” sem medo.
Trilha sonora para o texto: "Generator First Floor" - Freelance Whales

terça-feira, 6 de julho de 2010

Meu Discurso Indireto


Acordo, mas não abro os olhos. Gosto de abri-los apenas quando meu corpo está tomado de toda consciência. Consigo até sentir o cheiro da leve penumbra que entra pelas frestas da minha cortina mal fechada, é o suficiente para iluminar minha coleção de fotografias.
Minhas panturrilhas estão arrepiadas agora, algumas músicas me remetem à mesma sensação. Transporto-me para um outro tempo, talvez no passado, talvez no futuro, mas tudo que eu busco agora é esse mesmo tempo em um presente. Passo as mãos pelo meu próprio corpo, gosto de senti-lo sem vê-lo. Posso imaginar que elas, minhas mãos, podem ser uma brisa embalando-me as pernas e cabelos, em qualquer lugar desse mundo. Podem ser como as mãos do amante ainda não conhecido, por debaixo do meu lençol recém-lavado ou podem ser uma simples demonstração de afeto que eu posso e preciso me dar.
Levanto, passo perto do espelho e me olho. Fico forçando meus olhos a enxergar a coisa certa. Finjo que ignoro minhas sardas, procuro mais mechas claras do que meus cabelos costumam mostrar. O piso gelado desperta os poros das minhas pernas, no entanto, não procuro meias para calçar. Procuro me manter aquecida, mas não o suficiente, gosto dessa sensação.
Sirvo uma xícara de café para mim e um pote de água para o companheiro Boris, o labrador. Paro e começo a realizar novamente as mesmas ações rotineiras, só que dessa vez em frente ao espelho, prestando maior atenção de como minhas mãos se comportam em tais circunstâncias. Pego a xícara e invento novos modos de segurá-la, mas todos (os modos) bebem do mesmo gosto: café não-amargo e doce.
Procuro uma roupa a vestir, algo que combine com meu cheiro doce (e não-amargo, por sinal). Não encontro, desisto de sair. Seria imponente dizer que acendi um cigarro e o fumei como nunca havia feito antes, combinaria com meu personagem. Mas não, eu não fumo. A melhor coisa que pude fazer foi ligar o som em um volume desconhecido e tragar meu próprio ócio. Ao contrário do que pensam, ele não provém de angústia alguma, é apenas a necessidade do não-raciocínio, é válida em alguns momentos.
Tudo bem, não nasci para isso. Pego a primeira roupa que vejo, calço um tênis velho e encardido, vou correr. São tantas as pessoas na rua, gostaria de desacelerar meu ritmo e prestar atenção em cada uma delas. Assim, correndo, as pessoas me são como linhas, apenas alguns vultos de vida que meus olhos captam. A passagem das pessoas é tão imperceptível quanto a passagem dos ponteiros no meu relógio. Pergunto-me: Quantas linhas são necessárias para formar o emaranhado humano? Dou “bom dia” para tantas, umas respondem com a fala, abusando de toda a apatia. Outras respondem em um conjunto irreverente de cabeça e olhar. Algumas nem respondem. Toda essa variedade particular de saudações me fez lembrar aqueles tantos modos pelos quais segurei minha xícara de café, essa manhã.
Volto para casa, não sinto vontade de almoçar. Sinto vontade de escrever e assim o faço, estou aqui e agora. Minha cabeça, como sempre, borbulhante de ideias dos mais variados gêneros consegue esboçar algumas linhas de pensamentos supérfluos, efeitos do ócio. Ele faz de meu corpo instrumento para criatividade inútil (ou inusitada, diga-se assim de passagem).
Sento-me na beira da cama e observo o nada. Tento imaginar se o "nada" estaria perdido por entre as penumbras e a poeira que sobrevoa pelo meu quarto, o que seria muito, mas muito interessante. Me faria acreditar que o "nada" existe e que até ele pode despertar numa menina ociosa como eu (ou inusitada, diga-se assim de passagem)o alívio de que nada neste mundo possui carga zero.

Traguemos nosso ócio, exploremos nosso corpo, reinventemos nossos modos. Façamos até mesmo do ócio, um instrumento criador. Sejamos o instrumento, sejamos o criador. Esse é o meu ócio.

Nota: Escolhi o título "Meu discurso indireto" por fazer referência à falta de diálogo com uma segunda pessoa, à necessidade da introspecção. A fotografia foi escolhida para representar a ideia de que o ócio também é capaz de nos fazer querer enxergar novos ângulos (do mundo e de nós mesmos).

segunda-feira, 28 de junho de 2010

O Auge da Reciclagem Humana


É poder abusar de toda a introspecção privada por anos de juventude, devido aos grandes ruídos, grandes sentimenos e emoções que ela propicia. A juventude é sempre tão barulhenta...Ser idoso é permitir-se controlar o volume do que se ouve através do olhar: ir fechando devagarmente os olhos e quanto menos coisas a vista alcançar, mais coisas a se ouvir. Abrir gradativa e novamente os olhos,deixando que os sentimentos transformem-se em um misto de tudo que se vê e ouve.
O ser humano se apega tanto à juventude por sua a incapacidade de lidar com o próprio perdão. Na juventude é possível errar, existe o tempo a consertar. Na velhice o tempo deixa de ser o remediador de todas as medidas e o que resta? Apenas a capacidade de se auto-compreender, de distanciar-se o suficiente para enxergar o que foi vivido em um todo. Quando estamos próximos demais de algo, esse, passa a sair de foco. É como um objeto fotografado bem de perto: não consegue ser discernido ou identificado.
Perceber que a vida não é um dispositivo de constante criação, e sim, de constante reciclagem. A vida consegue sintetizar tamanha diversidade de aprendizado aproveitando-se apenas de uma única emoção ou experiência. A velhice é o auge dessa contínua reciclagem. É extrair o máximo do mínimo.
É aprender a conviver com a solidão do mundo que a cada dia se cala. É aprender a conviver com a solidão dos próprios órgãos, da própria sanidade. É remeter-se à uma coragem infantil, aquela que não nos permite pensar.
Olhar para trás e saber diferenciar a ação que o tempo exerce sobre as pessoas: se nelas ele despertou a mudança ou a revelação.

“Ah filha, eu gostava do seu avô, mas não cheguei a amá-lo. Casei-me com ele porque era alguém muito carente, meu pai não me dava carinho e eu não via a hora de recebê-lo. Eu pensei que ao longo do tempo o amor pelo seu avô surgiria, mas ele conseguiu ser mais frio que meu pai. Eu até poderia tê-lo amado, mas o amor é como uma florzinha, precisa ser regado".

"Ouvir é entrar por aqui (ouvido), deixar chegar até aqui (cabeça) e descer até aqui (coração)”.

"Eu detesto este mundo cibernético”.

"Não deixe que terceiros acabem com a sua harmonia".

"Só é possível conhecer a Deus através do amor".

"Não deixe que a máquina substitua o ser humano".

" O que importa não é o corpo...É o que o corpo exala. É carinho, é amor".

"Sabe filha, tem uma hora que nós vamos ficando velhos e precisamos rever nossos conceitos".

(Frases retiradas de diálogos com idosos). Nota: A fotografia foi tirada (ilegalmente) em uma de minhas visitas no asilo Cidade Vicentina.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A minha simbiose e a de Aline

Precisava urgentemente ir para casa. A última aula estava mais massiva do que o normal, era de matemática. O professor era um homem de meia-idade de passado provavelmente amargurado, o mesmo adorava fazer piadas carregadas de um bom humor-negro. A menina havia terminado um relacionamento a pouco tempo e desde então era o alvo preferido das brincadeiras do professor.
O sinal da saída mal havia tocado, ela tratou de se retirar o mais rápido possível e antes que vissem sua cara inchada evidenciando um choro, partiu rumo ao caminho de casa pensando nos últimos acontecimentos em sua vida. Sempre pensava muito, chegava até lhe doer a cabeça. O cheiro do protetor solar, ainda molhado, fazia com que seu nariz ardesse mais que o sol do meio-dia. Voltava a pé para casa e não era por falta de opção. O caminho, de fato, era cansativo, mas sua cabeça estava tão cheia de resquícios do passado, lembranças e perspectivas futuras que o trajeto todo passava batido. Quanto mais cheia sua mente estava, mais involuntários tornavam-se os movimentos de suas pernas.
Ao atravessar uma rua ainda próxima ao colégio, foi freada por um carro desnorteado que parou bem em seu caminho. O motorista era um senhor quase senil de cabelos e barba grisalha. A menina não pôde deixar de notar certa urgência no rosto do velho que falou apressadamente:
- Minha filha, onde fica o Hospital Universitário?
- Humm...O Hospital Universitário? É em frente a minha casa. Bem, vire à direita e siga reto. Depois vire a próxima esquerda e o senhor dará de frente com o um semáforo. Depois desse semáforo vire à direita novamente e siga reto. O senhor dará de frente com uma Avenida, então...
- Minha filha, eu não sou daqui! Preciso levá-la ao hospital urgentemente! – dizia o grisalho bigodudo apontando para uma jovem grávida e mulata chorando no banco do passageiro.
- Espere aí, o senhor está querendo me dizer que esta moça está tendo seu bebê agora?
-Sim!
- E a bolsa já estourou?
-Obviamente!
-Então quer dizer que se não chegarem logo ao hospital esta mulher terá seu bebê neste carro?
-De fato!!
- Meu senhor, então deixe-me entrar nesse carro e eu os guio até o hospital! – disse a menina já entrando no automóvel em um impulso frenético. O banco de trás estava lotado de parentes desnecessários e a mulata não tinha força o suficiente para afastar-se e levantar o banco.
-Quer saber, vou aqui na frente com ela mesmo! Vire a próxima direita, senhor!
E assim, segundo os comandos da menina, o velho seguiu apressadamente. Apesar de sério, era muito sarrista:
- É, Aline...Fique tranquila, o hospital fica a apenas mais duas horas daqui.
Aline ria ao mesmo tempo em que chorava. A menina segurava sua mão o tempo todo e fazia-lhe carinho na testa
- É seu primeiro filho, Aline?
- É sim
- Que honra, então! Terá uma boa aventura a contar sobre o dia do seu parto! – disse a menina despertando certa alegria na mulata.
O carro cheirava a pele negra com cigarros. Nenhum dos parentes ali presentes assemelhavam-se a uma figura paterna, Aline deveria ser mãe solteira.
- Mas diga-me, menina, você volta todos os dias a pé da escola? Haja pernas, não? – disse o velho. Na verdade, a menina tinha vontade de responder que não, que só estava voltando a pé para organizar os próprios pensamentos ou tentar, pelo menos, diminuir a ausência que às vezes se sente mesmo rodeado de muitas pessoas.
- Volto sim, senhor. Me agrada o trajeto e já estou acostumada com o cansaço. – e estava mesmo, o cansaço não era corporal.
- E você com certeza pretende ser médica, imagino eu – de certa forma ele não estava errado em presumir de tal forma.
- Não exatamente, eu quero ajudar as pessoas. Talvez, um dia, eu descubra como.
- É, é como encontrar a cura para a tal da AIDS...
Mas ela acreditava que algumas doenças podiam ser bem mais malignas do que as fisiológicas.
- Senhor, o hospital é logo ali!
Estacionaram em frente à entrada. A menina ajudou Aline a levantar-se do banco e a abraçou fortemente dizendo emocionada:
- Aline, boa sorte! Vai dar tudo certo, apesar de toda a dor você já conseguiu e essa é,com certeza, uma boa história para se contar!
- Que Deus te abençoe, menina e muito obrigada!
Ficou observando de longe Aline entrar na recepção. Acenou e seguiu novamente o rumo de sua casa. Ficou pensando nela, em toda dor que a gravidez proporcionava em seu útero e tudo por um outro ser. Ficou pensando que ela mesma também sentia fortes dores, não no útero, como as de Aline, mas que também eram por um outro ser. Sentiu-se privilegiada, reconheceu que como ela, alguns amantes (aqueles que amam) podiam ser comparados a uma gravidez. O amor, assim como o de uma gestante, “só é bom se doer”.

Essa crônica é um relato ocorrido há alguns dias. Foi uma das experiências mais ricas que vivi, principalmente porque pude exercitar a capacidade de associar, contextualizar e comparar diversas situações, emoções que vivo com as de outras pessoas.
Aline me ensinou que algumas simbioses (primeira relação estabelecida entre uma mãe e um filho, através do cordão umbilical) não ocorrem apenas em uma gravidez, mas também, em momentos em que estamos formados humana e suficientemente para encarar novas realidades. Seja a simbiose de antigos amores (como a minha), seja a de uma gravidez (como a de Aline) ou de tantas outras condições que nos fazem querer permanecer dentro de “úteros” pelos quais nos encontramos diversas vezes e dificilmente conseguimos nos desprender (afinal são tão acolhedores e quentinhos, não?). A separação e a mudança são as experiências necessárias que vivemos em nossas primeiras horas de vida e, por mais dolorosas que algumas sejam, é irônico pensar o quão elas se repetirão por diversas vezes.
Bem, é isso. A propósito, quais são os úteros em sua vida? Vamos cortar as simbioses que precisam ser cortadas.


Nota: A última frase, que diz “amor só é bom se doer” é um trecho da música “Canto de Ossanha”, composição de Vinicius de Moraes.