segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O frio humaniza as pessoas

Sentei-me ao lado dela. De tudo que poderia dizer, não consigo pensar em nada mais marcante que os olhos. Cansados, profundos, azuis. Carregava consigo para vender um punhado de pequenos livros, coletânea de contos. A escritora era ela mesma. Na capa: "Contos" - escrito em letra de forma trêmula e desalinhada.
Sua pele me dizia que sua idade era de 30, mas os olhos beiravam os 50. Na mão esquerda, uma tatuagem de coração entre o polegar e o indicador.
Não era a primeira vez que a encontrava ali, no mesmo lugar: rua Maria Antônia, bem em frente ao portão da minha universidade. Já havia comprado um de seus livros, certa vez. Eram bons, humanos. Ao ler, tive a impressão de que a maioria deles era destinada a ela mesma. Em um dos títulos, li: "Mensagem de fé". O título me foi suficiente para entender sua história.
Fiquei a observar o modo como ela abordava os mais variados tipos de pessoas. Executivos, estudantes, trabalhadores de distintas profissões.
- Contos?
- Não - esquivava-se engravatado.
- Contos?
Ignoravam os estudantes. Resolvi puxar assunto:
- Dia difícil hoje? – sorri com um olhar doce.
- É, hoje, especialmente, elas estão mais duras – disse a mulher apontando para uma multidão que ali passava, parecendo ignorar todos os sentidos que lhe foram concebidos.
Prosseguiu:
- As pessoas não conseguem ser... - fez uma pausa quase que torturante - normais. Elas são abertas ou fechadas.
Passei um tempo ali com ela, observando o modo como seus olhos e mãos se comportavam enquanto falava. O olho direito piscava antes do esquerdo. Os dedos se contraíam a medida que as palavras lhe fugiam da cabeça. Em certo momento, um estudante lhe ofereceu esmola. Ela recusou:
- Eu não quero esmola, só quero vender o meu trabalho.
- Sabe o que é, é que eu não vou ter tempo de ler, só ando lendo coisas para faculdade... – justificou-se com voz defensiva.
- É, é, eu sei... – ironizou a mulher, como quem o quisesse longe dali o mais rápido possível. Funcionou, o estudante tratou de apertar o passo e se pôr para fora da calçada que estávamos.
- Você viu? – ela virou-se para mim – Não conseguia nem ao menos olhar nos meus olhos e dizer “não”. Parece que tinha vergonha de me dar atenção.
- Acho que você deveria chorar – sugeri como quem oferece um café.
A mulher tirou a boina que cobria sua cabeça e sorriu aliviada.
- Você tem toda razão.
Não muito tempo depois, um senhor barrigudo e careca aproximou-se de nós arrastando os passos. Interessou-se pelos tais contos:
- Quanto custa? – perguntou enquanto folheava um dos livros com sua mão enrugada e quase que em farelos.
- Apenas cinco reais! Bora comprar? – animou-se a mulher, antevendo a compra. Não estava errada. O velho retirou uma nota do bolso e, antes que pudesse perguntar, a mulher antecipou-se:
- Sim, tenho troco para vinte!
Observei aquela cena invisivelmente, sem pronunciar uma palavra.
- Patrícia Hironimus...
- É a primeira vez que acertam meu sobrenome. Bem, pelo menos é a única coisa de bom que minha mãe me deixou... – pude sentir um ar deprimente e ainda assim cômico em sua voz. Devia ser uma mulher muito espirituosa.
O sol era quase do meio-dia, algumas gotas de suor escorreram por sua testa:
- As pessoas estão assim, quase que sufocadas pelos seus ternos e impacientes, pois não está frio. O frio humaniza as pessoas.
Fiquei a pensar em suas últimas palavras quando peguei o ônibus para casa. O sol que entrava pelas janelas tostava minhas pernas já morenas.

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