domingo, 20 de novembro de 2011

Psicanalista e paciente

Hoje um rapaz mais velho (típico pai de família) puxou papo comigo no ônibus. Me pediu para escolher entre dois chicletes que havia nas mãos: um de menta e o outro de hortelã. Recusei ambos, dissimulei uma gastrite e ganhei uma conversa incrível.
Ele disse que havia notado meus olhos murchos, então eu disse que o medo fazia isso com os olhos das pessoas. Ele conversou comigo até minha casa. Me aliviou. Se chamava José Miguel e não era nenhum tarado querendo traçar uma garota do interior. Era apenas alguém querendo conversar no meio do caos da cidade cinza.
Perguntou se eu cantava. Tiro no escuro, certeiro. Que droga, minha voz fora descoberta, eu canto mesmo. Quando falo de coisas inteligentes, canto firme, decisivo. Quando choro, canto grave, murmurado. Quando enfureço, canto arranhado. Quando sorrio, meu canto nem se ouve.
Tive que reconhecer, o cara era um adivinhador. Dos bons, por sinal. Suas adivinhações só foram por terra quando tentou adivinhar meu nome. De Juliana me tornei Célia. Célia é nome de gente adulta, engravatada, marca de feijão. Ele me disse que tocava violão, botei fé, o cara devia ser dos bons. Pele quase mulata, voz grave, cabelo grisalho...Devia ter aprendido a tocar na infância e agora seria praticamente um mestre das cordas. Tiro no escurro, errei feio. O cara tocava há menos de 1 ano e não entendia bulhufas de notas musicais. Assim como eu. Fiquei feliz em ser a única a fazer música sem entender de partituras, códigos. De códigos já me bastavam as placas, semáforos, apitos, buzinas que eu vejo, escuto nas ruas. E o olhar das pessoas, então? Quer código mais indecifrável que esse?
Mas música não era a única coisa que tínhamos em comum. Além de não decifrarmos códigos e estarmos aparentemente sozinhos naquela cidade, ambos ficamos frustrados com o modo com que o nosso cérebro é capaz de pensar, imaginar e criar sentimentos involuntariamente. Que frustração é não poder ser dono de si mesmo.
- Às vezes eu tento parar de pensar naquilo que me aflinge, mas, por mais que minha atenção esteja deslocada em um outro plano, parece que aquela pontada de preocupação fica latejando em mim - disse eu, ridiculamente esperando que aquele desconhecido me desse algum esclarecimento sobre a minha causa.
Ótimo, de passageiro de ônibus, o Zé Miguel se tornou psicanalista. E meu traseiro, ao invés de estar sentado em uma poltrona desconfortável, se reportou para um luxuoso divã. Eu quis chorar, mas ao invés disso cantei grave, murmurado. Bombardeei o Zé com teorias freudianas baratas sobre aquilo que, na verdade, nem Freud explica. Acho que nesses últimos dias andei tentando denominar demais. A arte, a música, a mim mesma. O Zé me disse que a gente só se angustia com aquilo que não consegue entender.
Na saída do ônibus, nem demos as mãos. Você sabe, aquele distanciamento entre psicanalista e paciente.

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