sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A cidade sob os meus olhos: um museu de arte moderna

Começo essa reflexão sobre o Museu de Arte Moderna (MAM) contando um relato que vivi.
Há menos de um mês, um rapaz mais velho puxou papo comigo no ônibus. Típico pai de família, pele quase mulata, voz grave, cabelo grisalho. Me pediu para escolher entre dois chicletes que havia nas mãos: um de menta e o outro de hortelã. Recusei ambos, dissimulei uma gastrite e ganhei uma conversa incrível. Se chamava José Miguel e não era nenhum tarado querendo traçar uma garota do interior. Era apenas alguém querendo conversar meio ao caos da cidade cinza.
Além de sermos duas pessoas aparentemente sozinhas na grande cidade, tínhamos outra coisa em comum: ambos não entendíamos de códigos. Ele me confessou ser pintor sem ter estudado os códigos da arte. De códigos já me bastam as placas, semáforos, apitos, buzinas que eu vejo, escuto nas ruas. E o olhar das pessoas, então? Quer código mais indecifrável que esse?
Depois de certo tempo, de passageiro de ônibus, o Zé Miguel tornou-se psicanalista para ouvir minhas angústias e anseios. E meu traseiro, ao invés de estar sentado em uma poltrona desconfortável, reportou-se para um luxuoso divã. Descobri partes de mim que jamais imaginei existirem.
Na saída do ônibus, nem demos as mãos. Você sabe, aquele distanciamento entre psicanalista e paciente. Saí correndo para avenida Paulista encontrar o amigo Nicolau Neto , que me esperava com aquela típica expressão de pouca surpresa por eu estar atrasada, alisando a barba malfeita. Cheguei lá, o termômetro marcava 25 graus; humanidade das pessoas a baixo de zero. Caminhei com Nicolau pelas ruas, contemplando a tudo com meu típico olhar de ignorância caipira. Passamos diante de um mendigo estirado na calçada e perguntei a mim mesma quando esse tipo de cena deixaria de me incomodar.
Parei para pensar no modo como a cidade se transformara em museu vivo de arte contemporânea sob os meus olhos: ambos me proporcionavam estranhamento, surpresa; ambos eram reflexos dos sentimentos, ainda que “feios”, presente nas próprias pessoas, e o principal: ambos, na maioria das vezes, eram incompreendidos.
A arte contemporânea não deixa de ser um anúncio de um tempo em que a feiura e o próprio vazio social é componente fundamental para conceituar as obras realizadas. Do mesmo modo que as pessoas não se permitem contemplar a cidade, elas não se permitem contemplar a arte, pois ambas escancaram a incompreensão de cada um para consigo mesmo e isso é confirmado pelo modo como reagimos diante de uma pintura “feia” ou um ambiente de “caos artístico”.
Fazer da cidade um museu vivo (com esculturas vivas como o Zé Miguel e andarilhos), é se confrontar com aquilo que tentamos decifrar a todo o momento: a nossa essência. Deixamos nossa zona de conforto, passando de meros espectadores da arte, para produto, parte dela.
A arte contemporânea não é apenas mais um relato da história, ela é uma chamada à história e ao olhar crítico que estabelecemos no nosso cotidiano. É uma lembrança do quão vivo estamos e o quão podemos fazer uso de todos os nossos sentidos. Tudo isso, sem pudor, sem limites ou regras (até parece que estou descrevendo um adolescente).
Temos a doce ilusão de pensar que nos conhecemos, até que é chegado o dia de irmos a um museu de arte contemporânea. Quando alguma obra nos causa estranhamento, reagimos de modo incomum e pensamos: "poxa, essa reação não é típica de mim!", quando na verdade, essa reação revela apenas mais uma faceta de nós mesmos.
Nota: O início do texto foi retirado de “Psicanalista e paciente” para ilustrar as ideias colocadas nessa reflexão.

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